LAMEIRAS II - Pedra do lado Esquerdo (“Santos do Forno” ou “Li. Gaias”)
Pedra do lado Esquerdo (“Santos do Forno” ou “Li. Gaias”)
A Pedra que
serve de base à cruz que, hoje, fica à esquerda da cruz central do Calvário de
Lameiras tem imagens somente na face frontal.
Esta pedra é
diferente das outras, não só pela sua forma e tamanho, mas, sobretudo, pela
inscrição que nela se encontra, pelo nome por que é conhecida e pelas
vicissitudes por quem tem passado.
Tem a forma de
um paralelepípedo, embora imperfeito, pois que a largura da face da frente
juntamente com a face oposta, medem 0.55m, enquanto as faces laterais não vão
além de 0,47m, e a altura mede, sensivelmente 0, 60m. O seu peso deve rondar os
400kg.
Nela se
encontra a inscrição “Li. Gaias” e sempre foi conhecida, entre a
população, pelo topónimo “Santos do Forno”.
Mas, se bem se
compreende o atributo “do forno”, mais dificilmente se compreende porque é que
a população lhe atribuiu sempre o nome de “Santos”. É caso para supor que, por
detrás deste nome e do costume imemorial, esteja a prestação de um culto divino
que antes existira legalmente e que, em tempos posteriores, passou a ser
considerado abominável, permanecendo, no entanto, furtiva e disfarçadamente, na
mente e no coração de alguns dos seus devotos que o foram perpetuando até se
desvanecer e misturar com a lenda que, sem dúvida, conserva elementos
históricos.
“Santos do Forno”
Foto:
Junho 2010
1- Identificação e descrição das figuras
A partir da fotografia ilustrativa
que acabo de apresentar verifica-se existirem os seguintes elementos:
- A Inscrição LI.GAIAS, por cima de todo o conjunto artístico;
Inscrição (Fig. 1)
- Uma figura humana, ao centro, vestida com uma túnica que lhe desce do pescoço até ao chão, encobrindo-lhe inclusivamente os pés;
- Tendo, à cabeça, um cesto ou alcova recheada de frutos ou outros géneros alimentícios;
(Fig. 2)
- Uma figura humana (feminina?), do seu lado direito, a oferecer-lhe, com a mão direita, um manhuço[1] de espigas ou um ramalhete de flores e com a mão esquerda empunhando um ramo de árvore (mais semelhante a um ramo de palmeira/tamareira);
(Fig. 3)
- Do lado esquerdo e, imediatamente junto à figura humana central, descortina-se uma outra figura, de perfil e completamente vestida, à excepção dos pés, com corpo humano e com cabeça de ave (possivelmente a cabeça da Fénix[2], cf. Moisés do Espírito Santo, Secção de figuras entre as pp. 240-241, verso da moeda de Tiro, da figura 37) em posição de confidente ou de assistente privilegiado, possivelmente com a função sacerdotal;
(Fig.4)
- Mais afastada, está outra figura humana, talvez masculina, também de costas, com o cabelo mais curto do que o da primeira figura, e nua, a oferecer, com a mão esquerda, um grande fruto (muito parecido a um abacaxi/ananás), enquanto na mão direita levanta um ramo de árvore, em sinal de alegria. A simetria conseguida entre esta figura e a aqueloutra do lado direito pode constituir, por assim dizer, a dupla de “acólitos da espiga”.
(Fig. 5)
2- Análise das imagens
2.1- Análise da Inscrição
As letras estão escritas em caracteres latinos, mas formam
um grupo ou expreessão grega LI.GAIAS Λι.Υαιαs ou Λιγαιαs.
Nesta inscrição o nome
Gaias vem precedido pelo advérbio Li e é seguido por um
ponto. Este advérbio Li encontra-se em Aristófanes (184,2), um poeta e cómico
ateniense do IVº século (a. C.), na forma de Lian Pánu, segundo a opinião de Liddel & Scott (1968, pp. xvii e 1046), com a significação de
verdadeiramente, o verdadeiro, o autêntico. Assim a tradução da expressão. Desta
foma, a tradução de Lian Pánu de Aristófanes seria ao verdadeiro deus
Pan. De igual modo a forma Li, seguida do caso genitivo encontra-se na Tragica
Adespota (Ed. A. Nauck TGF p. 837, segundo os mesmos autores Liddell &
Scott (Idem, p. 335).
Aplicando o mesmo
advérbio Li ao substantivo Gaias, teremos a expressão Li.gaias ou Li.Gaias, significando:
à verdadeira Gaia La vraie « Gaia », ou « Gaia »,
l’authentique.
Os deuses
romanos não foram muito populares entre os lusitanos. Se é verdade que se
encontra por todo o lado comprovado o culto aos vários deuses romanos, também
não deixa de ser verídico que esse culto se encontrava sobretudo nos centros
urbanos ou municípios. Ao lado destes “instalaram-se os representantes de
todo o panteão asiático, e era para esses deuses que ia a adoração mais
fervente das multidões”[3].
García y Bellido explica a não adesão à religião romana pela falta de conteúdo
místico da mesma”[4].
Por outro lado,
os romanos adoptaram divindades vindas de outros povos e tanto aos deuses
próprios como aos que tinham adoptado de outras origens, prestavam-lhes culto
apropriado, de uma maneira geral em pequenas aras para os quais escolhiam, de
preferência pequenas elevações perto ou dentro das suas casas de habitação
quando se tratava de deuses pertencentes a uma família ou nos pequenos morros
quando se tratava de uma povoação ou vila.
Essas aras eram
preferencialmente em forma de paralelepípedo, sendo normalmente trabalhada
artisticamente, podendo, inclusive, conter uma ou mais inscrições. Era à volta
dessa ara que se realizavam as cerimónias cultuais dedicadas à divindades
protectoras da casa ou do povoado.
A Ara
era propriamente o local onde se depositavam as oferendas e encontrava-se
colocada na parte mais elevada da casa ou da povoação que, normalmente, se
situava num pequeno outeiro sobranceiro a esses lugares. A esse lugar sobranceiro
à aldeia ou o outeiro onde a ara era colocada dava-se-lhe o nome de “altarium
(singular). Portanto, o lugar de culto de uma vila (casa senhorial) romana ou
de um povoado era constituído por dois elementos fundamentais: o outeiro ou
parte mais elevada que era, normalmente preparada de modo a constituir uma
espécie de terreiro (quando não era já naturalmente um lajedo) e a ara
que se colocava no meio desse local aberto. Esta disposição da Ara facilitava a
adoração que os fiéis vinham prestar à divindade em cuja honra era erigida.
Manuel J.
Gandra no seu livro Portugal Sobrenatural[5], ao
referir-se a este assunto fornece informações muito importantes, tanto no que
diz respeito à ara, como no que concerne o nome porque ficou sendo conhecido
o altarium entre a gente do Minho. Segundo ele, a ara constituía
o “elemento fulcral do altarium, isto é, do outeiro, colina ou alto
sobranceiro à povoação, onde decorriam os referidos cultos”, enquanto o altarium
se conserva na toponímia minhota sob as formas de crasto, crastelo
e castelo”. Por outro lado, Gandra afirma que, “nos nossos dias, muitas aras aparecem a servir de supedâneos a cruzeiros
processionais de certos templos erguidos na proximidade de antigos outeiros,
substituindo-os”.
2- Características sagradas desta pedra
Esta sua
explicação julgo poder aplicar-se à pedra de Lameiras que é conhecida sob o
nome de “Santos do Forno” e passo a dar razão desta minha suposição. Em
primeiro lugar esta pedra apresenta características de ara romana, pois que tem
forma paralelipipédica; é uma pedra trabalhada artisticamente; apresenta
imagens referentes à agricultura; e possui uma inscrição que tudo indica ser
dedicada a Gaia. Em segundo lugar, encontra-se actualmente a servir de
supedâneo de uma cruz. Em terceiro lugar existe uma tradição em Lameiras,
segundo a qual essa pedra se encontrava, nos seus inícios, juntamente com as
outras duas pedras que hoje fazem parte do Calvário e que foram separadas por
um “homem mau”, talvez um Regedor ateu ou incrédulo que as separou, deixando
uma no lugar original (a pedra central), levando a segunda para o forno de modo
a padecer os horrores do fogo e a terceira para a fonte do Lameiro, de modo a
ser afogada.
2.3- Pedra ligada a uma Lenda
Entre o Povo de
Lameiras existe uma “Lenda” ou história segundo a qual esta pedra, na sua
origem, repartia o mesmo espaço sagrado com as outras duas pedras que, hje se servem
de supedâneo às outras cruzes do Calvário do “Santo”. Foram, no entanto,
separadas umas das outras, em tempos posteriores, mas muito antigos, por um “homem
mau, ateu e incrédulo”, talvez um “Regedor” isto é um Oficial civil “ateu” ou “incrédulo”.
Segundo a mesma
“história” ou “lenda”, a pedra centra foi utilizada como pedestal da Cruz
Central que assim ficou por muitos anos; outra foi colocada numa fonte para que
se afogasse sempre que as águas cresciam; a terceira, esta de que estamos a falar,
foi colocada numa das paredes do Forno Público ou Comunitário para que sofresse
os horrores do fogo.
2.4- Toponímia sagrada de Lameiras
Em Lameiras
existem nomes que podem ser relacionados com a Ara dedicada a Gaia. Por
exemplo:
O topónimo de “Castelo”
(um dos locais a Noroeste da aldeia e considerado o bairro onde começou a
construção da aldeia) poderia ter tido a sua origem num antigo Castelum
que teria substituído o nome de Altarium, onde se encontrava instalado o
Altar dedicado a Gaia. Na verdade, a tradição afirma que as três pedras
originariamente se encontravam a ocupar um mesmo espaço, ou seja, numa zona
onde elas poderiam ter
Quem conhece
bem a topografia de Lameiras sabe que o terreno que começa no “Santo”, e
prolonga até ao “Castelo” constitui uma espécie de lomba que vai
descaindo pouco a poço, indo terminar na “Tritana” (onde existia
antigamente uma nascente de água a partir da qual se foi feito um pequeno reservatório
muito rudimentar que servia para as mulheres lavarem roupa, mas que, hoje já não
existe). E estes três nomes estão relacionados com a mitologia greco-romano.
‘Santo’ ‘Castelo’ Tritana’
O Castelo, foi
sempre considerado o começo da Aldeia, pois acima dele, havia formigas a mais,
impedindo a construção de habitações humanas. Este nome, porém, como já vimos
relacionava-se com o “Castelum” romano que poderia muito bem ser o
substituto do nome “altarium”, ou do local onde existira, antigamente a
Ara sacrificial e a “Tritana” é um nome que, possivelmente, teve origem num
possível culto dedicado a deus mitológico Tritão (Τρίτων) é um deus
marinho, considerado o mensageiro do Mar
por ser filho de Poseidon, o deus
do Mar (ou Neptuno na mitologia romana e de Anfitrite (ou Salácia) e que era
geralmente representado com cabeça e tronco humanos e cauda de peixe.
Tritão deu
origem à classe dos Tritões (Τρίτωνες), que podiam ser masculinos e/ou femininos
e cuja função era a de acompanharem os deuses e deusas marinhos. Sendo assim, o
nome “Tritana” estaria relacionado com uma das filhas de Tritão, talvez Triteia[7] e tal
nome dado à pequena nascente e pequeno tanque de Lameiras constituiria um resquício
deixado, ali, de uma divindade feminina da mitologia greco-romana.
Desta forma, essa
lomba teria sido, nos inícios da Povoação de Lameiras, o seu espaço sagrado
comum aos cultos que se prestavam às principais divindades: o “Santo” deveria
constituir o lugar do deus principal cujo nome se desconhece, presentemente; o “Castelo”
seria o lugar do altar de Gaia e a”Tritana” seria o local reservado a uma filha
de Tritão ou, talvez à própria Anfitrite, a deusa do mar e esposa de Tritão,
que, por sua vez, era uma das filhas de Poséidon.
Ora, se dermos
crédito a essa tradição, podemos admitir que essas três pedras originariamente
se encontravam perto umas das outras. E, se a pedra central nunca foi removida
do local onde ainda se encontra hoje, então é tal facto pode ser indício de que
o altarium ou outeiro original seria o outeiro que hoje é chamado de
“Santo” e que se estende para Norte, indo terminar na fonte da Tritana (hoje
desaparecida), situando-se, sensivelmente, no seu intermédio, o bairro chamado
Castelo.
O nome Castelo
dado a este bairro de Lameiras bem pode ter origem no facto de essa zona ter
servido de altarium, onde a ara dedicada a Gaia se encontrava
levantada. Falta saber o que significa, nessa antiga tradição, a expressão
“estarem juntas” as três pedras. Tanto pode significar que estava juntas, como
agora se encontram, o que não me parece muito plausível, como encontrarem-se as
três num mesmo outeiro, embora separadas por uma certa distância o que me
parece ser mais realista.
Assim sendo, e
relativamente à pedra na qual está esculpida Gaia, poderia ter acontecido muito
naturalmente, o seguinte: nessa zona sobranceira à povoação de Lameiras
existiu, primeiramente, o altarium romano onde se encontrava a ara
dedicada a Gaia, e que se localizaria entre a Fidalga e a Tritana; este
local sagrado teria ficado conhecido entre a gente de Lameiras pelo nome
Castelo, topónimo que ainda hoje persiste; mais tarde, com a chegada do Cristianismo
e até ao século VII a prática religiosa em honra dessa divindade Gaia continuou
paralela com a prática cristã que escolheu o outeiro do “Santo” para elevar a
Cruz, o símbolo do Cristianismo; os próprios cristãos continuavam a prestar
culto tanto à Cruz, símbolo do Cristianismo, como a Gaia, resquício do
politeísmo romano; no sétimo século, principalmente após o VII Concílio de
Toledo, no Reino Visigodo (cujos inícios tiveram lugar a 18
de Outubro de 618 e no qual tomaram parte 39 bispos sob a presidência de
Orôncio de Mérida), muitas coisas começaram a mudar no seio do cristianismo
ibérico.
Neste mesmo Concílio iniciou-se uma
modificação do Direito Romano de Justiniano, iniciando-se uma série de quatro
colecções visigóticas. Logo na primeira colecção foram declaradas “revogadas
todas as leis anteriores, proibindo o uso em qualquer juízo das leis romanas e
determinou que todos os pleitos que surgissem dali em diante, quer civis, quer
crimes, fossem processados e julgados exclusivamente de acordo com as regras
estabelecidas na sua colecção”[8].
E, no decorrer
deste mesmo Concílio, introduziu-se no Credo a palavra “filioque”[9], o
que originou, mais tarde, o cisma entre a Igreja Romana e a Igreja Ortodoxa
Grega que reclamava que a introdução de tal palavra era espúria e contradizia o
Credo da Concílio de Niceia (325 d. C.), actualmente a cidade de Iznik, na província
de Anatólia, na Turquia asiática e nome que se costuma dar à antiga Ásia Menor.
Efectivamente,
segundo testemunho da Arquidiocese Ortodoxa Grega de Buenos Aires e América do
Sul[10]
“A palavra
"Filioqüe" significa "e do Filho" e representa uma
afirmação teológica introduzida abusivamente pelo Ocidente no texto original do
Credo de Niceia-Constantinopla. Essa interpretação abusiva começou por ser
feita em Espanha, nos Concílios de Toledo dos séculos VI e VII e, mais tarde,
generalizou-se a todo o Ocidente.
Vejamos o que
diz o texto original do Credo: "Creio no Espírito Santo (...) que procede
do Pai, e com o Pai e o Filho recebe a mesma adoração e a mesma glória".
Portanto, temos uma afirmação muito clara de que:
«O Pai,
criador de todas as coisas, gerou o Filho e expirou o Espírito Santo; Tanto o
Pai, como o Filho, como o Espírito Santo, são adorados e glorificados do mesmo
modo; isto é, nós, cristãos, adoramos e glorificamos uma Trindade perfeita,
três Pessoas num só Deus.»
Ao alterar
esse texto, aprovado por todos os Padres conciliares e inspirados pelo Espírito
Santo, a Igreja Romana impôs aos seus fiéis a seguinte modificação:
«Creio no
Espírito Santo (...) que procede do Pai e do Filho ('Filioqüe')" Isto
significa que o Espírito Santo é visto como uma terceira Pessoa
"diminuída" em relação ao Pai e ao Filho. Como se o Espírito Santo já
não devesse ser adorado e glorificado do mesmo modo e com a mesma fé com que o
são o Pai e o Filho...».
Esta questão,
porém, prolongou-se durante muito tempo, provindo dum credo atribuído ao papa,
São Dâmaso (366-384), sendo acompanhada de outras profissões de fé dos séculos
IV-VI. Seguindo estes exemplos, alguns dos Concílios regionais, especialmente
da Espanha começaram a fazer semelhantes declarações, sobretudo aqueles que se
realizaram nos anos 447, 633 e 638. Esta prática dos concílios espanhóis tinham
por objectivo difundir essa doutrina que, a bem dizer, contradizia o Credo do
Concílio de Nicéia.
Mais tarde, a
palavra “filioque” foi introduzida pelo III Concílio de Toledo, realizado em
589, sendo recitado o credo já com essa palavra introduzida. Simultaneamente a
essa introdução foi pronunciado o anátema sobre todos aqueles que recusassem
acreditar que o Espírito Santo procedia do Pai e do Filho.
Esta inclusão
de “filioque” no Credo de Niceia, foi seguida pelos Concílios regionais de
Toledo (VIII, em 633; XII, em 681; XIII, em 683; XIV, em 688; XVII, em 694) e
ainda pelo IV Concílio regional de Braga, em 675 e pelo de Mérida, em 666[11].
A dar crédito a
estas transformações no Cristianismo, dos primeiros sete séculos, pode inferir-se
que até esse tempo o Cristianismo não poderia ter eliminado na Península
Ibérica os cultos tidos como idolátricos e provenientes das civilizações
anteriores. Era, demasiado evidente que, a par do culto, praticado pelos novos
cristãos “a cristianização não terá eliminado as práticas litúrgicas
tradicionais, nas zonas rurais, realizadas no altarium (outeiro), apenas
lhes desviando o alvo”, no dizer de Manuel Gandra[12].
Este mesmo autor continua por afirmar no mesmo texto que “Só a partir do século
IX, com o início da organização paroquial, os outeiros terão sido dotados de
ermidas” ou capelinhas. Até lá as aras ou estátuas representativas das
divindades adoradas existiam ao ar livre, desafiando as intempéries e as
adversidades de toda a espécie.
2.4- Interpretação da Lenda
Aproveito esta
anotação de Gandra para fazer uma pequena observação acerca do nome Castelo
pelo qual é conhecida uma parte ou bairro de Lameiros e que fica contíguo ao
local do Calvário actual, onde hoje se encontra a pedra, conhecida por “santos
do forno”. Segundo a tradição, esta pedra teve o seu primeiro “habitáculo”
exactamente onde agora se encontra. Ou seja: a dar crédito a essa tradição,
esta pedra teria sido retirada do outeiro que sobranceava a aldeia, ou seja, de
uma zona pertencente ao outeiro que ocupava a região que hoje se expande desde
o "Santo" até à "Tritana", passando pelo "Castelo".
Por outro lado, a mesma tradição refere que
foi retirada dali por alguém que “era descrente”, e que, por isso, foi
alcunhado de “homem mau” ou “não temente a Deus”. Ora, como para fazer isso só poderia
tratara-se de alguém com autoridade, fácil foi concluir ter sido um certo
“Regedor” da Freguesia, cargo ocupado por um cidadão que sendo considerado apto
a manter a ordem pública, era nomeado directamente pelo Presidente da câmara. Este
“Regedor” seria, por assim dizer, a unificação dos poderes civil e religioso
que foi estabelecida a partir do Édito de Milão[13] do imperador
Constantino, com um imperativo conjunto da unificação do Império e
intensificada no tempo do reino visigótico num intuito idêntico que foi a
unificação do Reino Visigótico sob o signo do Cristianismo.
Ora com o decorrer
dos tempos e com a sucessão das gerações, foi fácil passar da história à lenda
e transformar a realidade dos factos em histórias misturadas com semelhanças
adicionadas e individualmente interpretadas consoante o que mais verosímil
parecia no momento em que as pessoas se sentiam confrontadas.
Assim, ao
falar-se de uma pessoa “descrente” poderia, na sua origem, significar descrente
na adoração prestada a uma divindade que não fazia parte da ortodoxia do
Cristianismo Romano e as expressões “um homem mau” e “não temente a deus”
poderiam muito bem ter sido proferidas pelos adoradores dessas divindades
antigas que, com a intransigência dos chefes do Cristianismo procuraram
desmantelar os sacraria, levando para locais diferentes e de usos
completamente a-religiosos, as aras que tinham sido dedicadas a tais
divindades. Desta forma, a ara dedicada a Gaia teria sido levada para o
forno comunitário, enquanto a ara que possui a dupla imagem do Ankah e
da Grande-Mãe terá sido encrostada na parede da Fonte do Lameiro. Esta seria
uma das vertentes da história da tradição cuja finalidade seria, portanto,
prioritariamente fazer desaparecer os lugares altos onde eram adoradas
divindades antes tidas por verdadeiras, mas apelidadas de idolátricas pelos
seguidores da Religião subsequente, ou seja, a Cristã.
Tal mudança de
locais, no entanto, pode muito bem ser considerada sob dois pontos de vista
diferentes: primeiramente e seguindo a lógica anterior pode ser considerada
como a condenação ao fogo e ao afogamento de todas as divindades contrárias ao
Cristianismo; mas também pode ser considerada como uma elevação destes dois
últimos lugares, enquanto o forno passaria a lugar de adoração de Gaia, deusa
agrária das colheitas (e muito bem visto, que é no forno que se coze o pão
proveniente dessas colheitas) e a Fonte transformar-se-ia num templo dedicado à
Grande-Mãe que, além de ser tida como a deusa da fertilidade, era igualmente
simbolizada pela abundância das águas.
De facto, a
pedra com a inscrição Li.Gaias tem todas as características de uma
verdadeira ara dedicada à deusa Gaia, que não seria outra divindade senão
aquela referente à deusa Mãe-terra.
Segundo Hesíodo[14], Gaia (que também pode ser denominada
Géia, Gea ou Gê) é a deusa da Terra, a Mãe Terra, que tendo surgido do caos,
juntamente com Tártaro, Eros (o amor), Erebo e Nix (a noite), gerou Gaia gerou
sozinha Urano, Ponto e as Óreas
(as montanhas). E com Urano gerou os doze titãs chamados
respectivamente: Oceano, Céos, Crio, Hiperião, Jápeto, Teias, Reia, Témis,
Mnémosine, Febe, Tétis e Cronos[15].
Mas também não
seria, de todo, alheio a presença, nessa inscrição de Gaiu, pois esta palavra
‘Gaio’ (de Gáïos, a, on[16]), é um adjectivo,
referido a Terra, significando: ‘da terra, ‘terráqueo ou ‘filho da terra (= paîs
gaïos), sendo o seu genitivo Gaiou[17].
Este nome, além de se aparentar com Gaia que significa Terra, em oposição a Mar
e Céu seria o nome sob o qual era conhecido Poséidon, o deus do mar.
Nesta inscrição
o nome Gaia, deixem que repita, é precedido pelo advérbio Li ou Lian que
Significa: Verdadeiramente, muitíssimo, extremamente Teogonia, Cosmogonia,
134-138 [18].
Em Aristófanes (184.2), poeta cómico ateniense do século IV (a. C.)[19] encontramos a forma Li ou Lian Pánu (do
deus Pan)[20], onde a preposição Li /
Lian significa verdadeiramente / verdadeiro(a) /autêntico(a). Se o mesmo
advérbio for aplicado a Gaia teremos o seguinte epíteto: à Verdadeira ou
autêntica Gaia. Desta forma, a pedra que possui essa inscrição seria uma ara
(altar) dedicada à deusa Gaia ou ao deus Gaio/Poséidon.
Poséidon, na
verdade, começou por ser um deus agrário, ao qual os gregos e fenícios
prestavam culto. Por estas características ctónicas e pela força da metonímia,
foi-lhe atribuído o nome de “GAIUS”, o “Senhor ou Deus da Terra”, por
excelência.
Esta divindade
passou por várias metamorfoses, através dos tempos. Segundo Moisés do Espírito
Santo, Poséidon/Gaio “presidiu, por vezes aos percursos da vegetação e foi honrado
com as primícias da agricultura porque muitos lhe atribuíam a propriedade de
encher os caules de seiva e os bagos de sumo”[21]
e veio a ser celebrado em certas regiões no mês de Agosto, antes mesmo das
vindimas[22], enquanto que noutros
lugares da costa marítima do Médio Oriente foi adorado como um deus dos
infernos e do fogo explicando Moisés do Espírito Santo[23]
esta última atribuição pelo facto de existir uma certa semelhança entre os
abismos marinhos e o mundo subterrâneo e por se atribuir a Poséidon o poder de
provocar os terramotos e os maremotos.
É muito curioso dar-se a Gaio a atribuição de Deus
do Inferno, e de Deus do fogo. Esta atribuição poder-se-ia encontrar
numa das doze janelas do Coro da CATHEDRAL de CANTERBURY (25), onde estava
escrito o seguinte texto:
Sic deus aitatur tumulo triduoque moratur.
Dominus ligaiu diabolum spolifiuit infernum[24].
Tradução:
Assim como se diz que Deus morou no túmulo durante três dias,
Assim o Senhor Ligaiu sepultou (substituiu (?) o diabo no inferno
Mais
tarde, Poséidon/Gaio passou a ser o Senhor dos mares, porque os seus adoradores
se tornaram marinheiros e, por extensão, Deus dos oceanos, dos rios, dos lagos
e das fontes. Assim, quando Ulisses enfrentou as graves dificuldades da
navegação, é de Poséidon que ele fala e é a ele a quem se dirige, segundo a
Odisseia de Homero.
Conclusão
A figura que se
encontra nesta pedra do Calvário do Santo de Lameiras, concelho de Pinhel e que
possui a inscrição LI.GAIAS, deve ser uma Ara ou Altar dedicado a
uma divindade chamada Gaia, Géia, Gea (Γαῖα que é
a forma poética grega de Γῆ (Gē ou Gê - “terra”) que personificava
a Deusa da Terra ou a Mãe-Terra à qual os antigos habitantes de Lameiras
ofereciam parte das suas colheitas, na esperança de receberem as graças da
fertilidade dos seus campos e dos seus animais.
A existência desta pedra no “Santo” dessa freguesia
é um monumento de carácter religioso que, além de testemunhar o culto prestado
a uma divindade não cristã, supõe uma época muito antiga, anterior, pelo menos,
à época em que o cristianismo se fixou plenamente nessa aldeia.
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[1] Pequeno feixe de espigas, dito também, mão-cheia,
que se podem apertar com a mão. Era normalmente feito com as espigas que se
apanhavam no campo depois de se ter terminado a ceifa. As espigas que ficavam
no chão eram aproveitadas pelos pobres que faziam esses manhuços, atando-os com
os caules mais compridos. Aulete, Caldas (1952). Dicionário Ccontemporâneo
da Língua Portuguesa, Vol. II, p. 310, diz que o termo manhuço é próprio de
Trás-os-Montes e define-o como sendo: “conjunto de coisas, que se podem
abranger na mão, sem se esconder, pequeno feixe, manelo” e diz que vem do latim
Manus.
[2] Segundo Plínio, o Velho, era do tamanho de uma águia,
com plumagem dourada em torno do pescoço, corpo vermelho e cauda azul. Tinha
uma barbela na garganta e um tufo de penas na cabeça (http://pt.fantasia.wikia.com/wiki/F%C3%AAnix.
[3]
Cumont, Les religions orientales, p. 236
[4] Península Ibérica, cit., pp. 555-60, citado por Moisés
Espírito Santo, 1988, Origens orientais da religião popular Portuguesa –
Seguido de Ensaio Sobre Toponímia Antiga...., , E Assírio e Alvim, Lisboa,
p.237.
[5] Gandra, Manuel J. (2007). Portugal Sobrenatural:
Deuses, Demónios, Seres Míticos, Heterodosxos, Marginados, Operações, Lugares
Mágicos e Iconografia da Tradição Lusíada. (Vol. I, p. 350-351). Lisboa: Esquilo
edições e Multimádia, Lda.
[7] Uma das filhas de Triton deu, igualmente o epónimo a uma cidade grega na região
de Ankhara, como se pode encontrar nas Obras de Pausanias (Description de
la Grèce, VII, 22,8), selon le site
< http://www.theoi.com/Nymphe/NympheTriteia.htmlsite
>.
[8] Hélcio Maciel França Madeira, Curso de Direito
Romano: História, pp. 12 e 13. [online] [Consult. 29-06-2010] Disponível em:
http://helciomadeira.sites.uol.com.br/GPHD_arquivos/CL_0_arquivos/CL_L2_T3.pdf.
[9]
Esta expressão é latina e foi introduzida no Credo de Niceia pela Igreja
Católica Romana para com ela afirmar que o Espírito Santo procedia do Pai e do
Filho. Tal adição levou à separação da Igreja Ortodoxa, em 1054, separação essa
que ainda hoje persiste.
[10] [online] [Consult 29-06-2010] Disponível em http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/
igreja_ortodoxa/ o_cristianismo_ortodoxo_em_perguntas_e_respostas.html.
[11] [online] [Consult 29-06-2010]
Disponível em: http://www.clerus.org/clerus/dati/2007-11/23-13/08
QUESTAOFILIOQUE.html.
[12] Portugal Sobrenatural, 2007, p. 351.
[13] Este Édito foi promulgado a 13 de Junho
de 313 pelo imperador Constantino (306-337), vindo a assegurar a tolerância e a
liberdade de culto ao Cristianismo em todo o Império Romano.
[15] Hesíodo Teogonia, Cosmogonia,
134-138
[16] Na forma
feminina Gaia declina-se desta maneira: Nom. Gaia, gen. Gaias,
Dat. Gaia, Ac. Gaian, Voc. ‘o Gaia enquanto no Masculino o termo
correspondente Gaio se declina desta forma: Nom. Gaios; gen.
Gaious, Dat. Gaio, Ac. Gaion, Voc. ‘o Gaie.
[17] Liddell, H., G. & Scott,
R. (1968)., Greek-English Lexicon, Oxford, at the Clarendon
Press, p. 335.
[18] Ibidem,
p.1046. Com este sentido encontramo-lo em Max Zerwick (1960) Analysis
Philologica Novi Testamenti Graeci, editio altera emendata, Romae Sumptibus
Pontificii Biblici, Romae, páginas correspondentes a Mac. 1,35; 6,51; 9,3;
16,2; Mt. 2,16; 4,8; 8,28; 27,14; Lc. 23,8; II Tim. 4,15; II Jo. 4; III Jo.3.
Lian é um advérbio: usado com verbos, precedendo-os; com adjectivos, servindo
de atributo ou de predicado, precedendo ou seguindo o adjectivo e pode ser
ainda usado com outro advérbio precedendo-o ou seguindo-o, cf. William F. Arndt
& F Wilbur Gingrich, 1952, Greek-English Lexikon of the New Tesgtament
and other Early Christian Literature. The University Of Chicago Press.
Checago, Illinois – Cambridge at the University Press.
[19]
Ed. T.Kock, CAF ii p. 12; suppl. J. Demianczuk, Supp. Com. P.8; cf. Liddel, Op.
cit. pp. xvii e 1046.
[20]
Pan; gen. Panos; dat. Paní; voc. ‘o Pan.
[21]
Moisés do Espírito Santo, op.cit. p. 216-217
[22] F. Durbach, Dictionnaire des
antiquités grecques et romaines, V, p. 65 citado por Moisés do Espírito Santo,
op. cit. P. 217.
[23] Moisés Esp. Santo. Ibidem
[24] Full text of "The verses formerly inscribed on twelve windows in the choir of Canterbury cathedral".Cambridge Antiquarian Society. Octavo Publications. No. XXXVIII,THE VERSES FORMERLY INSCRIBED ON TWELVE WINDOWS IN THE CHOIR OF CANTEKBUKY CATHEDKAL. Repeinted, From The Manuscript (nº 25). [online][Consult.19-06-09 e 20-06-2010] Disponível em |http://www.archive.org/stream/ versesformerlyin00jamerich/versesformerlyin00jamerich_djvu.txt.